Horácio

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Horácio era um homem comum. Vestia roupas comuns, andava de um jeito comum, assistia aos programas comuns, comia comida comum e tinha um emprego comum. Nada em sua vida era um desafio. Tudo era milimetricamente programado e premeditado para que ocorresse da maneira que ele desejava. Qualquer imprevisto era tratado como um pesadelo dantesco. Nada podia fugir ao seu controle total, de sua posse.

Naquela manhã de inverno ele levantou. Eram sete em ponto – como sempre. Ele tomou seu banho de exatos cinco minutos enquanto Marina preparava o café. Ele o bebia em movimentos certeiros.

Posso abrir a cortina?

Sete e trinta saiu de casa. Terminou sua conversa matinal com Marina, lhe beijou com um ‘eu te amo’, como sempre. Ao sentar-se no automóvel, não o sentia. Não como sentiu quando ele era jovem. Mudava de marcha em movimentos automatizados, concisos. Seu pensamento não estava ali. Viajava por qualquer outro lugar, menos ali.

O céu azul-claro com a luz do Sol passando por fendas sutis nas nuvens não lhe fazia refletir. Ele olhava para o céu, mas não o via nem o sentia. Não fazia parte do universo fechado que criou para si mesmo. Sentia o cheiro da gasolina cozinhando o ar ao seu redor e ouvia os sons bizarros propagados dos carros a sua volta, mas não os presenciava.

Posso abrir a cortina?

Às oito em ponto ele batia seu crachá para entrar no escritório onde trabalhava fazia vinte e cinco anos. Ele usava os mesmos óculos fundo-de-garrafa, o mesmo penteado – apesar de ter menos cabelo agora – e se portava da mesma forma que se portava vinte e cinco anos atrás. Um funcionário exemplar.

“Um, dois, três, quatro”, ele contava enquanto carimbava os papéis à mesa. Ao meio dia ele bateu seu crachá para o almoço e dirigiu-se ao refeitório. Uma concha de arroz, uma de feijão, um pedaço de carne, quatro folhas de alface, meio tomate e dois bifes bem passados.

Posso abrir a cortina?

Ele contava os segundos para sair. A cada dez segundos parava o que estava fazendo e olhava para o grande relógio no fundo do corredor. Faltavam cinco minutos para o término do expediente quando o diretor da empresa convocou todos para uma reunião.

– Amanhã começaremos uma mudança em nossa empresa. Mudaremos as funções, reduziremos um pouco o quadro e ajustaremos nossa empresa para o futuro. Não podemos mais continuar vivendo no passado. Vocês devem perceber que usamos materiais antigos, e toda nossa empresa está fundamentada nessa maneira antiga de pensar. Amanhã um novo diretor começará a trabalhar com vocês.

Horácio ouviu… E não ouviu. A partir da palavra mudança, nada lhe importava. No dia seguinte, sete em ponto,  acordou, bebeu café, conversou com Marina, beijou-a e se foi no carro. Na empresa não havia ponto para ‘bater o crachá’. Uma moça com metade da sua idade estava cadastrando todos biometricamente.

– Que palhaçada é essa? Cadê a máquina de ponto?

– Esta é a máquina nova, senhor… – ela parou para ler seu crachá. – Horácio. O senhor passará a usar sua digital para marcar suas entradas e saídas.

Ele bufou, resmungou, mas fez. Entrou no escritório. Tudo estava em outro lugar. Não era o mesmo. Ele procurou o local onde se sentava, mas havia um vaso de plantas enorme em seu lugar

– Onde está minha mesa?

Um colega que trabalhava com ele a cinco anos, mas não se conheciam direito, lhe disse:

– Sua mesa nova fica ali.

– Essa não é minha mesa, essa não é minha cadeira.

O dia inteiro foram resmungos, perguntas redundantes, inoportunas e quase sempre retóricas. No fim do expediente, o novo diretor veio ao seu encontro:

– Horácio. Grande Horácio. Tudo bem com você? – Dizia ele com seu sorriso enorme, quase maléfico, mas era na verdade apenas simpatia.

– Não. Não está tudo bem. Eu não quero essas coisas que você colocou na minha mesa. Agora aquela maldita impressora faz todo o trabalho que eu fazia ou quase todo ele, e essas outras máquinas fazem quase tudo, tudo.

– Horácio, o mundo evolui, assim como as pessoas evoluem. Você tem que acompanhar o ritmo.

– Não preciso disso. Eu sei tudo do meu trabalho e faço muito bem. Pergunte a qualquer um: Quem é o funcionário mais eficiente deste lugar?

A conversa durou minutos, mas pareciam horas. Nada daquilo adiantou. Ele continuava em seu universo e não queria sair de lá nem mesmo para espiar o que tinha lá fora. Isso lembrou ao diretor o mito do homem da caverna.

Posso abrir a cortina?

Horácio se aposentou. Não aguentou muito tempo depois das mudanças na empresa, nem o aguentaram muito tempo também. Ao seu fim, quase não tinha mais utilidade. Ficava num canto fazendo trabalhos simples para evitar desafios.

Pouco depois, adoeceu. Era uma doença fatal, descoberta em seu término. Não havia o que fazer. Tudo ficou vago, vão, só. Ele havia planejado duas ou três vezes escrever um romance; viajar, ter filhos. Não fez nada.

Horácio esperava a hora de sair do trabalho, de dormir, o natal e, de tanto esperar, o tempo passou. Tentava lembrar em seu leito de morte das coisas que ele havia feito e se orgulhava. Nada. Ele havia morrido aos 30, mas não sabia. Vegetava em seu universo fechado, composto por trabalho, Marina e café.

– Posso abrir a cortina? – Perguntou Marina, olhando para a janela do hospital que tinha uma linda vista do mar. Ela estava com uma maquiagem fraca, mas borrada. Tentando em vão se preparar para o momento.

– Sim, por favor. Disse ele, com esforço.

Naqueles últimos segundos de existência, Horácio olhava para o mar, para o céu com um Sol poente. Um sorriso sincero lhe apareceu de repente. Imaginava como seria apreciar esse mesmo pôr do sol em Paris ao lado de Marina. Ele se foi. Deixou de existir. Deixou para trás todo o seu universo; deixou o carro, a esposa, o trabalho, a poupança para emergências, as roupas, e tudo. Dele mesmo só restaram as lembranças de um homem comum.

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