Sopa [Parte 1]

sopa

 

Todos os convidados estavam sentados à mesa rindo e contando piadas. Falando sobre histórias da infância que eles mesmo haviam inventado só para contar. Falando sobre a novela, o tempo. A maioria já havia passado da quinta taça de vinho fazia algumas horas, e o álcool já estava derrubando as barreiras que prendiam as feras de suas mentes.

A única pessoa que não participava da conversa ou da bebida era Dona Amélia, a matriarca da maior parte dos presentes. A viúva de três maridos que tinha por prazer alimentar a todos que entrassem em sua casa. Era aquele tipo de senhora idosa com quem qualquer pessoa gulosa adoraria permanecer por uma longa temporada. Não faltavam biscoitos, tortas, pudins, nem brigadeiros, trufas ou balas.

A coisa toda era rodeada por uma música pop. Uma coisa repetitiva e monótona, editada por um rapazinho com acesso à internet e pouca criatividade. Ele havia mexido nuns botõezinhos e numas setinhas de um programa usando uma música que já não era boa de um artista pop, provando que tudo que é ruim pode, sempre, ficar pior.

Uma porção de netos, sobrinhos e outras crianças parentes e quase parentes de Dona Amélia corriam pelo jardim. Eles brincavam de esconde-esconde. Coisa rara nesta época onde telinhas de sete polegadas e meia tem mais importância que pessoas inteiras.

Dona Amélia servia o prato principal do Jantar com a ajuda de um de seus filhos. Era uma panela enorme, daquelas de cozinha industrial. Uma panela cheia podia alimentar toda a família e ainda sobraria ou pouco. Um berro foi o bastante para que todas as crianças viessem, afinal, quando crianças estão com fome de verdade, não é preciso chamar mais de uma vez.

O cheiro da sopa era bom. Tinha uma cor pouco marrom, pouco vermelho. Havia feijões cariocas, legumes, e carne, provavelmente de porco. Apesar de todos concordarem que o nome correto era feijoada, Dona Amélia insistia que o nome daquilo era sopa. Ninguém discutia o nome, afinal o gosto era bem mais importante.

Apesar das doses de vinho, todos ainda sabiam contar, e faltava uma criança.

– Onde está David? – disse Anete.

– Ele não apareceu – disse uma garotinha de seis anos erguendo os seus bracinhos raquíticos. – Ele deve estar escondido ainda.

– Como escondido. Vão lá fora e chamem por ele. Já está escuro lá fora. – Disse Anete.

Por mais de meia hora eles gritaram. Aos poucos, todos que estavam na copa haviam saído da grande casa para o quintal e gritavam pelo nome do menino. No fim do quintal havia uma portinha que dava acesso à floresta de pinheiros e ela estava aberta. Os quinze adultos presentes, exceto Dona Amélia saíram com lanternas em busca do menino enquanto ela e as crianças jantavam a deliciosa sopa.

Passava das onze da noite quando todos voltaram cansados e com um terrível olhar de fracasso e angústia, principalmente em Anete, mãe do garoto. Ela usou o telefone da casa para ligar para a polícia. Era um telefone antigo, daqueles que você coloca o dedo no número e roda até certo ponto. E você faz isso para cada um dos números que são discados. O incrível é que, apesar de tanto tempo de uso, aquela velharia ainda funcionada.

O policial que atendeu Anete deu uma resposta negativa ao pedido de busca de seu filho. Ele a questionou sobre a quanto tempo haviam dado por falta do garoto, e se somavam apenas cinco horas. O policial disse que só podia fazer qualquer coisa após completar um dia inteiro de sumiço. Anete chorou e gritou com o policial, mas nada parecia convencê-lo de que aquilo devia ser considerado urgente.

Os irmãos de Anete a levaram até a cama para que descansasse. Não havia mais nada que ela pudesse fazer naquele momento. É claro que ela não conseguia descansar. Mal conseguia fechar os olhos. Ela ficaria ali chorando a noite inteira.

Todos estavam na sala discutindo qual seria o próximo passo da busca, quando algo estranho apareceu na televisão: uma reportagem sobre o sumiço recente de duas crianças nos arredores da cidade de veraneio. Sem corpos, sem pistas, sem nada. E isso aterrorizou a todos até o momento que alguém bateu na porta com força várias vezes, fazendo bastante barulho.

O irmão mais velho de Anete atendeu, segurando uma pistola calibre trinta e oito na mão e apontando imediatamente para quem estava do lado de fora. Então ele olhou para baixo e encontrou o pequeno David amordaçado e com as mãos amarradas por trás das costas. Havia sangue por todo seu corpo, cabelo e roupas, mas não era dele próprio. Ele havia dado cabeçadas na porta e ainda estava em estado de choque.

Ensopado de sangue. Esta é a forma mais correta de descrever como se encontrava o pobre David, o menino de cabelos castanhos que mal havia aprendido a falar. O mais interessante das crianças é que, em sua maioria, não conseguem mentir. Aqueles olhos pequenos e frágeis contavam uma história assustadora sem necessitar de auxílio.

Tia Adelaide lhe trouxe uma enorme toalha de praia que media três vezes o tamanho da criança e tentou remover a maior parte do sangue que lhe cobria enquanto Tia Joana lhe preparava um chá de camomila bem forte.

Após um longo banho à esfregões e meio frasco de shampoo, conseguiram deixá-lo sem vestígios de sangue. Não havia nenhum arranhão, nenhum corte, nenhuma marca. Nada que pudesse confirmar qualquer tipo de violência.

Ninguém acordou Anete, que finalmente havia conseguido dormir. Não porque não quisessem ou não pudessem, mas porque não queriam assustá-la mais do que já estava.

Tio Tobias, o que havia lhe apontado a arma ficou de joelhos em frente ao menino que ainda estava enrolado em uma toalha, agora menor, mas com os cabelos ainda molhados e com leve cheiro de talco. Ele lhe deu um beijo na testa como pedido de desculpas por tê-lo assustado ainda mais e lhe fez perguntas.  Nenhuma foi respondida. O choque havia feito o menino parar de falar.

David bebeu o chá e dormiu no sofá, deitado sobre o colo de Tia Adelaide, que o levou até a cama. Os adultos discutiam qual seria o próximo plano à meia luz da sala de estar com a televisão ainda ligada. A ideia de seguir os rastros deixados por David foi cogitada até que perceberam que uma tempestade caía do lado de fora.

Era quase unânime a ideia de que o menino havia sido raptado pelo mesmo homem que raptou outras duas crianças, mas não estava claro como David havia escapado. Isso os levou a crer que o raptor estava próximo do local, ou pelo menos seu esconderijo.

Um dos presentes sugeriu que contratassem um detetive particular. Um excelente detetive que pudesse ajudá-los, pois já não tinham mais tanta certeza de que a polícia ajudaria. Em todo caso, ligaram para ambos. A polícia abriu inquérito para investigar o ocorrido pois pensavam haver ligação deste caso com os outros dois desaparecimentos e que David seria de crucial importância. Também ligaram para o detetive particular, que chegaria logo pela manhã do outro dia.

Perto das seis da manhã, Dona Amélia já estava levantada e preparando o café da manhã. Não bastassem os familiares, ela pretendia alimentar também os policiais e o detetive. Apesar de ninguém tê-la avisado, ela ficou escutando a conversa por uma fresta entre seu quarto e a sala de estar. Seu quarto ficava no primeiro andar pois ela já não podia mais subir escadas com tanta facilidade. O fazia apenas quanto estritamente necessário.

E quando o café ficou pronto, e o pão e as panquecas e outras coisas deliciosas, o cheiro de padaria fez com que todos acordassem. É claro que o cantar do galo atrasado de Dona Amélia também ajudou. A maioria dos galos canta perto das cinco da manhã, mas o galo de Dona Amélia tinha o hábito de cantar perto das oito. Ele subia o telhado, pulando por entre pilhas de coisas amontoadas no fundo da casa e cantava do ponto mais alto do telhado. Muitos se questionaram neste momento porque Dona Amélia não degolava o maldito e fazia um ensopado de frango.

As crianças foram as primeiras a descer a escada, com exceção à David, que foi ao quarto onde estava sua mãe, junto de Tia Adelaide. O susto inicial foi logo ocupado por uma enorme felicidade no rosto de Anete que abraçou o pobrezinho como se não o visse a mais de um ano. Lhe beijava de canto a canto e o apertava conta seu peito como se estivesse tentando mantê-lo grudado para nunca mais perdê-lo. Ele não dizia sequer uma palavra. Ele apenas deu um sorriso sincero e correspondeu aos carinhos.

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